AS QUADRILHAS DOS PALÁCIOS DE JUSTIÇA: Vendas de sentenças, tráfico de tóxicos, nepotismo e enriquecimento ilícito!!!

Revista "Veja", 15 de Setembro de 1999

Fiel Transcrição:

Brasil Crime

Tiros na Justiça

 
Juiz que denunciou irregularidades no Judiciário de Mato Grosso é assassinado no Paraguai
Baixo esquerda: Dante de Oliveira quer investigação rigorosa e rápida: autoridades se empenham tarde demais. Em cima esquerda: O denunciante, Juiz Leopoldino Marques do Amaral

O JUIZ LEOPOLDINO DO AMARAL DENUNCIOU 20 (VINTE) DESEMBARGADORES. ISTO É UM EXEMPLO JUDICIÁRIO!!!

Leopoldino do Amaral (à esquerda) acusou desembargadores do Tribunal de Justiça (ao lado) de desvio de. dinheiro, venda de sentenças, assédio sexual, nepotismo e corrupção. Passou a receber ameaças de morte. Relatou isso às autoridades, que nada fizeram. Seu corpo (acima) foi encontrado às margens de uma rodovia, queimado e com duas balas na cabeça. Destacam-se o enterro do juiz Amaral assassinado e o Palácio da Justiça onde "funcionavam" a quadrilha dos desembargadores denunciados pelo juiz assassinado.

Alexandre OItramari, de Cuiabá

Foto: JOÃO BARBALHO/GAZETA DE CUIABÁ

 

O juiz Leopoldino Marques do Amaral, 55 anos, da Vara de Família de Cuiabá, disse, em uma de suas últimas entrevistas, que estava trilhando um caminho sem volta. Desde que encaminhou um documento à CPI do Judiciário. em julho, em que denunciou irregularidades no Tribunal de Justiça de Mato Grosso. envolvendo dezasseis dos vinte desembargadores do órgão, o magistrado vivia a obsessão de provar que a Justiça de seu Estado eslava encardida. O juiz reuniu documentos e preparou dossiês que foram enviados ao Supremo Tribunal Federal. ao Superior Tribunal de Justiça, ao Ministério Público e à Polícia Federal. Em todos eles. fazia acusações graves contra seus colegas de toga. que iam da venda de sentenças a nepotismo. Amaral também vinha recebendo ameaças de morte, embora não acreditasse que algo pudesse acontecer-lhe. "Essas pessoas que estão sendo acusadas devem torcer para que eu não pegue nem gripe", dizia. Na terça-feira passada, o corpo do juiz foi encontrado numa vala. às margens de uma rodovia do município de Concepción. no Paraguai, a 210 quilómetros da fronteira com o Brasil. O magistrado foi morto com dois tiros — um no ouvido e outro na nuca. O rosto e o tórax estavam queimados. A identificação só foi possível depois que um legisla confrontou os dentes chamuscados com sua ficha odontológica.

O assassinato do juiz comoveu as autoridades. principalmente as de Brasília. O senador Antônio Carlos Magalhães, mentor das investigações no Judiciário. pediu uma apuração rigorosa. O presidente Fernando Henrique, por intermédio do porta-voz. lamentou o crime e afirmou que recebera a notícia com repulsa. No Congresso, houve discursos indignados. A CPI do Judiciário, que há mais de um mês recebeu as denúncias e empilhou-as em um escaninho com outras 2000, anunciou que agora irá priorizá-las. O ministro da Justiça. José Carlos Dias, encaminhou uma equipe de dez policiais federais a Mato Grosso. A Procuradoria da República também recebeu um dossiê com as denúncias do juiz. Assessores do procurador-geral Geraldo Brindeiro ficaram analisando a papelada, sem decidir nada, por quase cinquenta dias até que, na quarta-feira passada, quando o corpo de Amaral já eslava a caminho de Cuiabá, resolveram dar início às investigações. "As denúncias têm de ser apuradas a fundo e rápido", disse o governador Dante de Oliveira, de Mato Grosso. Foi preciso sacrificar uma vida para que as instituições funcionassem.

Amaral era polémico. Denunciava nepotismo, mas empregava a mulher e a cunhada em seu gabinete. Sua briga com os desembargadores do Tribuna] de Justiça começou em 1990. quando denunciou que os colegas engordavam os salários usando uma malandragem chamada auxílio-combustível. Existia desembargador que alegava gastar em serviço mais de l 000 litros de gasolina por mês — e o posto fornecedor do combustível para o tribunal 

pertencia ao desembargador Flávio José Bertin. O STF investigou o caso, mas o processo foi arquivado. Amaral, no entanto, continuou sua cruzada. Em oito anos, protocolou onze denúncias contra os desembargadores. Viu na CPI do Judiciário uma oportunidade de chamar a atenção — e conseguiu. Reuniu todas as acusações e mandou um documento de onze páginas ao Senado. com uma fita cassete. Além da venda de sentenças e nepotismo, Amaral acusava os desembargadores de tráfico de influência, fraude em concursos públicos, desvio de dinheiro e corrupção. A fita trazia uma conversa de um desembargador com um homem, em que falavam sobre interesses sexuais em algumas funcionárias do tribunal. Amaral conseguiu só parte do que queria. Suas denúncias foram divulgadas, mas ninguém se interessou em investigá-las.

Dias depois de denunciar os colegas à CPI do Judiciário, Amaral recebeu o troco. A Corregedoria do Tribunal de Justiça de Mato Grosso instaurou um processo disciplinar contra ele, para investigar a denúncia de que teria desviado para sua conta corrente recursos de depósitos Judiciais. Amaral, de novo, encaminhou documentos ao STJ reclamando da perseguição e das ameaças. Em uma representação que chegou ao STJ na quarta-feira da semana passada, quando já estava morto, o magistrado relatava que policiais cercavam seu condomínio, seguiam seu carro, intimidavam seus familiares e invadiram sua casa. Amaral vivia se escondendo, como se fosse um foragido. A cada dois dias dormia em um lugar, geralmente pequenos hotéis de Cuiabá. Apenas alguns familiares sabiam de sua localização.

No dia 2, fez seu último contato. Ligou para sua secretária de Cáceres, a 90 quilómetros da fronteira com a Bolívia, onde estava fazendo algumas investigações. Tinha outra bomba em mãos que pretendia denunciar em breve: conseguiu reunir documentos provando que um iate de um dos desembargadores do Tribunal de Justiça explodira, em 1994, no Rio Paraguai quando transportava uma carga suspeitíssima: éter e acetona — produtos utilizados no refino de cocaína. Amaral foi visto pela última vez na noite de 3 de setembro, quando fechou a conta do hotel e saiu tentando dirigir sua caminhonete. Foi ajudado por um hóspede a colocar o carro em movimento, já que não sabia dirigir e seu motorista não estava. A caminhonete também foi encontrada no Paraguai, a 140 quilómetros do local onde o juiz foi executado. Na noite de sexta-feira, a polícia acreditava estar perto da solução do crime, depois de prender o empresário Josino Guimarães, apontado no dossiê do juiz como "corretor de sentenças". Josino, denunciado por um telefonema anônimo, é amigo do desembargador Odiles Freitas de Souza, atual vice-presidente do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso, dono do iate que explodiu com acetona, e alvo da investigação de Amaral.

Com reportagem de Sandra Brasil, de Brasília 

"veja" 15 de setembro, 1999

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